segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Desexistir pessoas
Minha escritora favorita – Carla Carrion, ou Carlotinha – dizia que desexistir pessoas era sempre cruel demais. Acompanhei a invenção e conceituação dessa palavra ao longo dos nossos cinco anos de faculdade e entendia bem o que Carlotinha queria dizer. Tínhamos essa tendência de inventar palavras e nunca soubemos até onde esses neologismos era nossa tentativa de ser um pouco Guimarães Rosa ou se havia em nós uma latente psicose. Mas isso nos servia muito bem na nossa busca por expressar, em palavras, aquilo que vivenciávamos e fazia tanto sentido que era bonito sentir nossas ideias livres de algumas gaiolas conscientes.
A palavra um tanto esdrúxula ressurgiu dias atrás quando eu e meu esposo conversávamos sobre a vida. Ele falava dessa (infeliz) capacidade humana de esquecer. Concordamos que esquecer alguns fatos – traumáticos ou não – preservam nossa integridade psíquica, afinal não somos super homens e super mulheres que dão conta de elaborar e digerir certas situações da vida e o esquecimento, nesse sentido, é um excelente recurso terapêutico, tão natural quanto dormir e acordar.
Mas a questão que inquietava a Carlotinha, inquietou-nos e talvez o inquiete também é quando esquecemos pessoas. Esquecer pessoas é triste. E fazer com que elas deixem de existir para nós. É como se, de repente, não sentíssemos mais falta da voz, do cheiro, das manias, dos braços e abraços de alguém. É como se não houvesse mais necessidade desse alguém. A isso chamo de descartalizar relações, o que implica desexistir as pessoas nelas envolvidas. E fico a pensar até onde nós também não nos desexistimos ao fazer esse movimento amnésico...
E por sentir que os vínculos humanos são tão frágeis, pesa-me concordar com Antoine de Saint-Exupéry, pois ele tem toda a razão: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Finalizo, portanto, com um trecho de “O Pequeno Príncipe” – livro que se reinventa a cada nova leitura – que sintetiza tudo que aqui tentei expressar.
E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? Perguntou o principezinho. Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o príncipe, estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer cativar ?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa criar laços...
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou à sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me! Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.
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Você sempre me surpreende, dengo. Eu sou um sortudo de estar casado com uma mulher como você.
ResponderExcluir:)
E não seria 'desexistir' e 'descartar'?
Denguinho,
ResponderExcluirembolei-me na escrita da palavra esdrúxula. Obrigada pelo cuidado! Quanto ao "descartalizar" é isso mesmo que quis escrever ou inventar...
Bjo!
Ei, querida Ju... tão bom ler vc!
ResponderExcluirDesexistir e desistir , às vezes, são movimentos necessários. Mas ainda amo a arte de cultivar delicadezas. Também de trazer à tona algumas rudezas para ter a força de não repeti-las.
Saudades de vc, que existe aqui!
bjos,
Carlinha
Ju, ao ler o presente post, foi-me inevitável pensar que é inerente ao ser humano investir afeto em pessoas, sentimentos, sonhos, ideais e objetos materiais, os quais ganham para cada um de nós os contornos daquilo que neles protejamos.
ResponderExcluirEntretanto, quer seja por lutos inevitáveis que a vida nos impõe, quer seja pelos caminhos, descaminhos e escolhas da vida, torna-nos necessário promover, constantemente, o desapego daquilo que perdeu a razão de ser em nossas vidas, daquilo que deixa a bagagem mais pesada, tornando a incrível jornada de viver mais cansativa e penosa, a fim de que possamos nos relacionar com outras pessoas, conhecer novos lugares, experimentar coisas diferentes, sonhar outros sonhos.
E esse desapego, não necessariamente, significa que esses relacionamentos, sentimentos, sonhos, ideais e objetos deixaram de existir para nós, mas, tão somente, que já não possuem o significado e a importância de outrora. Pode ser que o sentimento tenha se desgastado, que a roupa esteja apertada, que aquele objeto que você tanto gostava não tenha mais serventia ou que a causa tão defendida tenha perdido o sentido... não importa! O que interessa é que, por algum motivo, perdeu-se a necessidade dessas conexões, inobstante tenham elas deixado lembranças (boas e ruins), e tais marcas não desexistem de nós, tampouco nós delas... Algumas delas, inclusive, por mais que nos esforcemos, estão sempre lá, ainda que adormecidas. Assim, mesmo que novas conexões tenham surgido, as nossas lembranças sempre nos permitem vivenciar, em nossa mente, pelo menos, o momento em que vivemos a alegria de um sorriso, de um abraço de conforto, de ter um vestido novo, de ver um sonho realizado, de ter a companhia de pessoas queridas que já se foram, de poder passar uma tarde inteirinha jogando conversa fora com alguém, sem que precisemos manter “eternamente” determinadas conexões!
Acho que foi isso que entendi do seu post!!!
Bjoka
Mana, sinta-se à vontade pra falar mais sobre sua "Teoria do Desapego"!
ResponderExcluirBjo!
Ei,Ju ... Seu texto faz refletir o quanto a aceleração da vida cotidiana nos afasta daquilo que temos de mais belo e sublime:a convivência com as pessoas, o simples fato de "ser" humano. Deixamos de criar vínculos, de nos permitir tocar pelo outro, esperando ansiosamente por aquilo que muitas vezes está tão perto e a nossa busca por grandes coisas acaba nos impedindo de enxergar. Obrigada por trazer para as nossas vidas a oportunidade de valorizar as famosas pequenezas e assim ter mais satisfação, alegria e realização com aquilo que nos é oferecido por Deus, da forma e da maneira que só Ele escolhe e sabe!!! Bjossssssssssssssssss
ResponderExcluirSó agora me dei conta que postei "desexistir pessoas" num dia de finados...
ResponderExcluirentão, consegui ver seu blooog!!! rsrs
ResponderExcluirsua irmão tbm é psicóloga?? O.õ
achei a teoria dela mais leve que a sua...
não é que a gente faça a pessoa ou o fato desexistir, apenas mudamos a prioridade...
não penso muito na minha avó, não que eu queira que ela desexista, mas é que ela está tão longe que prefiro pensar que ela tah bem e lembrá-la de vez em quando... como se fosse um mecanismo de defesa... tipo assim tá ligada? :P
Marcel,
ResponderExcluirem primeiro lugar, seja bem-vindo!
Em segundo lugar, minha mana não é psicóloga, afinal a família não aguentaria duas psicólogas (hehehe)! Ela escreve muitíssimo bem, na minha opinião, e eu sou fã, embora não concorde com tudo, tudinho...
Em terceiro lugar, acho que considero triste justamente o fato de mudarmos nossas prioridades quanto ao "onde e quando investirei afeto?". Meu questionamento central no post é "até onde nós também não nos desexistimos ao fazer esse movimento amnésico?".
Enfim, fique à vontade pra debater!
:)