quinta-feira, 29 de abril de 2010

"Traduzir-se" (Ferreira Gullar)



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

quarta-feira, 28 de abril de 2010

"É só o medo, meu bem."




“É só o medo, meu bem”

Certa vez pronunciei isso. E foi deveras uma das frases mais marcantes da minha vida, que fala de algo tão intrínseco ao humano que chego a me assustar. Assustar-me ao perceber que ele – o medo – permeia nossa maneira de viver de tal forma que quase acabamos aprisionados por ele. O que pode nos impedir de tentar, tentar, tentar até achar a tal felicidade que insistentemente buscamos em algum lugar...

Eu tenho dois pacientes com diagnóstico de “Síndrome do Pânico”. Repito: diagnóstico, o que lhes confere a triste realidade de terem um rótulo que lhes absorve e os paralisa. De forma bem simples, é como se o pânico fosse o guidom da bicicleta, direcionando seus pensamentos e ações. E, na maioria das vezes, o guidom pára. Fica estático. Travado. E, quando isso acontece, só vem a sensação de que o fim está próximo. É assim que meus pacientes se sentem: eles têm medo do fim...

Um deles, quando questionado “de que você tem medo?”, respondeu-me prontamente: “tenho medo de sentir medo”. Estaria ele falando das nossas eternas tentativas em nos prevenirmos daquilo que nos machuca? Estaria ele imaginando estratégias para se proteger daquilo que lhe oferece algum risco? Estaria ele revivendo a sensação de solidão?

Eu não sei... Tentei interpretar seu olhar. Mas só encontrei vazio e silêncio. E um pedido de ajuda. Seria útil dizer que é inevitável sentir dor, se decepcionar, cair ao tentar bater asas? Seria confortante mostrar-lhe que o medo não existe? Que ele só acontece?

Eu também não sei. Mas suponho que eu posso entendê-lo porque também tenho medo que paralisa, medo do fim e medo de sentir medo...